quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Uma Casa Cheia de Flores


Por Ailton Augusto
“(...) no homem se exaspera a anomalia de tudo o que respira.”
Emil Cioran
         Tinha acabado de fechar a janela, apesar do calor. De fora, vinham ruídos de festa que alteravam o ritmo que queria imprimir àquele trabalho que avançava pela madrugada. Ele entendia que toda interferência devia ser cortada. Sobre a mesa, uma xícara de café amargo esfriava e um conjunto desordenado de papeis ostentava rabiscos que talvez só ele próprio decifrasse, dada a caligrafia miúda e pouco linear que preenchia os rascunhos de uma futura apresentação. Queria atingir a plateia com frases de impacto: “...se pode ser chamado deste modo o momento em que nos sentimos ultrajados em nosso papel de seres pensantes e responsáveis por nossas próprias vidas. O momento em que descobrimos que estamos, como desavisados fantoches, tendo nosso destino traçado por mãos alheias”.
         Mas, para alcançar seu objetivo, seria interessante (para não dizer necessário) que ele próprio não estivesse sendo impactado-atravessado pelo ambiente ao seu redor. Havia chegado àquela casa já à noite, convidado para um final de semana de descanso após uma série de participações em palestras e pronunciamentos. Em todo caso, ele sabia que não descansaria antes de terminar aquele texto.
         Antes de voltar para a escrivaninha, colocada no quarto de visitas em consideração ao seu estilo hiperativo, ele parou no meio do recinto agora abafado, tentando recuperar o arranjo de suas ideias, perturbado pelo som que vinha de fora e que ainda se ouvia, longe, mesmo com a janela fechada. Porém, se viu às voltas com outras ideias, tentando também dar corpo, nome e sentido à sua estadia naquele local. Lembrou-se que, ao chegar, sua miopia não lhe havia permitido enxergar muito bem o jardim, mas este era um pequeno detalhe frente ao esforço que fazia para disfarçar o cansaço de todo um dia de participação em conferências. Ele sabia que sua anfitriã também estava cansada, mas notou que ela aparentava ter mais disposição, apesar de ostentar alguns anos a mais.
         Seu ingresso na casa havia sido precedido de um aviso: “trago visita”. Sete sílabas que, combinadas, eram suficientes para preparar o ambiente e os outros habitantes da casa, ainda que não tivessem o mesmo poder sobre o convidado, o qual foi surpreendido por um mundo de cores e um aroma inconfundível de rosas boiando no ar. O jardim, que há menos de um minuto ele não enxergara do lado de fora, estava, em verdade,  transposto ao interior da casa, na qual se notavam jarras de flores espalhadas por todos os cômodos.
         De volta à mesa de trabalho, ele se obriga à releitura de todo um parágrafo. Ao lado da luminária, uma das jarras de flores que foi mencionada acima. Releio o parágrafo anterior e noto que a descrição que fiz das flores tomou mais tempo e mais palavras que a percepção do meu personagem, quase instantânea. O problema é que essa percepção logo se perdeu em meio às apresentações que sua condição requeria, assim como nos perdemos, ambos, no exercício da escrita. Para que voltemos ao trabalho, o situo (por alto) da origem das flores: um parente que vive a algumas quadras dali as trouxe pela manhã. Deve ser essa a explicação.
         Sem mais questões para dispersá-lo da tarefa que se havia imposto, voltou à leitura de seus papeis. Uma caneta na mão direita serviria para cortar excessos ou fazer acréscimos. Com uma careta de desgosto riscou um período inteiro de afetada humildade e simulada incompetência: “Não sei ao certo como se faz essa coisa de 'julgar a História', entendem? Eu nunca precisei fazer isso. Mas, já que pedem minha contribuição ao debate, penso que o melhor será não fazer-me de rogado, mesmo convicto de que não trarei nada de útil porque, além de não saber julgar, tudo aconteceu há algum tempo e a memória pode falhar”. Sentiu-se cansado das piruetas de estilo a que a arte do convencimento o estavam forçando, além do barulho que ainda vinha de fora. Apagando as luzes, foi deitar-se nos braços de Morfeu. Escrevo assim para continuar usando as mesmas figuras-firulas de estilo que esse senhor cuja vida tento flagrar. Mas sei que é um esforço inútil porque, enquanto brinco com as palavras, ele sonha com as flores que enchem a casa. Trata-se de sonho que, de alguma maneira, se lhe configura como uma confirmação de que aquilo em que acredita é real. Ele se vê num paraíso cheio de flores, prenúncio de muitas boas coisas... Súbito, o despertador do celular tocou estridente e ele acordou sobressaltado, espantando para longe as flores reconfortantes. Disfarçou o mau humor que isso causava durante o café da manhã.
         Depois do almoço, menos contrariado e com o texto pronto (pronto?), se deixa ficar à mesa para uma conversa que supunha seria amena. É então que descobrimos (não sem susto) que as coisas são menos simples do que parecem. Contam para ele como a família que o está recebendo perdeu um membro de forma trágica. Um jovem de vinte e poucos anos vítima de infarto durante uma viagem a Bariloche. O relato é interrompido pela passagem sucessiva de um lenço de papel pelos olhos e pelo nariz da senhora que está com a palavra. Sente-se aturdido diante do assunto delicado e faltam-lhe palavras para consolar a uma avó de quase noventa anos que sobreviveu à perda do próprio neto. Pede licença e sai para uma caminhada. Alheia a tudo isso, a senhora continua sentada na cozinha de sua casa e escreve, com letra insegura, em um caderninho que intitula de diário. 
         Enquanto ele caminha, vai se recriminando pelo modo romântico com que encarou a presença das flores na casa, além da pouca utilidade que suas suposições sobre a origem delas tiveram no momento de consolar sua anfitriã. Afinal, flores servem para tantas coisas! Tantos são os símbolos deste mundo. Uma obviedade: leva-se flores ao cemitério, por exemplo, como uma maneira de agradar aos mortos. E então pensa: também pode ser que se encha uma casa de flores para, estando vivos, despistarmos a dor da perda.
         Encontro outra explicação para esse jardim metido casa adentro, ainda que ela não acrescente nada ao que vim contar aqui neste evento. Aliás, por que foi mesmo que comecei a falar dessas coisas?

AILTON AUGUSTO é natural de Juiz de Fora/MG. Desde 2007 é aluno regular do curso de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde concentra seus estudos em literaturas de língua portuguesa e língua espanhola. É escritor amador, com textos dispersos entre os blogs Um Eterno Brainstorm” e Verdades Provisórias”. Junto com outros dois amigos, atua como editor da Revista Encontro Literário (ISSN 2237-9401). Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.




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2 comentários:

  1. Na tua escrita algo mais que apenas passar um fato, uma lida, é profundo o que mostra a vida!
    Também sou de Juiz de Fora, prazer em ler você!

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    1. Olá, Emmannuel!

      Obrigado pelo comentário e pela leitura. Passei pelo seu blog e agora posso dizer: prazer em ler você também. Para não dispersar uma "conversa" em comentários aqui e acolá tomei a liberdade de mandar um e-mail para você!

      Abraço!

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